Com Jesuíta Barbosa, ‘Fim do Mundo’ conta história aterradora de Brasil arcaico
Série do canal Brasil, em cinco episódios, adapta autores nordestinos em trama surpreendente sobre dubiedade moral de um Brasil parado no tempo
Já virou lugar comum dizer que Pernambuco produz o melhor cinema do Brasil. É bom nos prepararmos para uma nova máxima. A de que o Estado apresenta, também, a melhor produção televisiva do País. É, ao menos, o que enseja a série “Fim do Mundo”, criação de Hilton Lacerda (“Tatuagem”) para o canal Brasil. Dirigida por ele e Lírio Ferreira (“Sangue Azul”), o programa tem cinco episódios – o primeiro foi ao ar no último sábado (19), mas pode ser assistido no Globosat Play.
Cena do primeiro episódio, “Mentira de Amor”, de Fim do Mundo: relação afetuosa, mas com ressentimentos, entre mãe e filho
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Hermila Guedes vive Vitória, uma mulher que se vê forçada a retornar a Desterro, cidade que deixou na adolescência. De volta com o filho, Cristiano (Jesuita Barbosa), a este fim do mundo, como classifica, ela é obrigada a conviver uma vez mais com Balbino (Alberto Pires), o irmão rude e intransigente que vive com a jovem Joaninha (Larissa Leão) e hospeda a sogra Mazé (Marcélia Cartaxo) como sua criada.
O desenvolvimento dessa história de delicadas e complexas ramificações familiares é temperada por cinco contos de autores nordestinos. Trata-se de uma experimentação estética que apenas um canal de fomento e estímulo à cultura brasileira como o Canal Brasil teria a coragem de sustentar. O primeiro episódio, “Mentira de Amor”, é baseado em Ronaldo Correia de Brito. Já o segundo, que vai ao ar neste sábado (26), às 22h, se inspira em Hermilo Borba Filho. “É uma experiência maravilhosa”, admite em entrevista exclusiva a atriz Hermila Guedes, que tem na série seu retorno à atuação após uma pausa para a maternidade.
Conhecida pelos filmes “O Céu de Suely” (2006), “Era Uma Vez Eu, Verônica” (2012) e “O Baixio das Bestas” (2006), todos expoentes do magnífico cinema pernambucano, a atriz vive essa personagem que se vê forçada a assumir um fracasso e enxerga no filho, recém-saído da prisão, um escudo para lidar com o passado que agora se apresenta como incômodo futuro. “É uma volta muito dolorida. É um sentimento de fracasso muito grande que toma a personagem”, defende a atriz. “E ela enxerga no filho a possibilidade de confronto com o irmão que ela não teria”, teoriza sobre o crescente clima de embate entre Cristiano e o personagem autoritário e frequentemente assustador defendido com destreza por Alberto Pires.
Jesuíta Barbosa e Hermila Guedes são os grandes destaques da inventiva e surpreendente Fim do Mundo
Foto: Divulgação
Devoção e cumplicidade
“Eu criei uma devoção a essa atriz”, reconhece com timidez e convicção Jesuíta Barbosa. Ele admite à reportagem que custou-lhe muita energia vencer barreiras naturais que a admiração por Hermila ergueu. Mas que a cumplicidade e afeto que testemunhamos na tela surgiu nos bastidores. “Descobri que temos muitas afinidades. Tanto em aspectos físicos, como em questões morais, de trabalho, do ofício do ator”, atesta.
O intérprete que ostenta no currículo filmes potentes do cinema nacional recente como “Tatuagem” (2013) e “Praia do Futuro” (2014), tem em “Fim do Mundo”, a consagração de um ano em que aconteceu na TV. Depois da participação exuberante em “Justiça”, minissérie exibida pela TV Globo em agosto, em que deu vida ao fascinante e arrependido Vicente, Barbosa cria outro personagem que tenta se conectar com um mundo que parece rejeitá-lo. “Tem esse jogo com a palavra acesso”, observa sobre o personagem, que foi preso por hackear sistemas e empresas. “O Hilton (Lacerda) trabalha muito bem as metáforas e elas são muitas. Fica para o público escolher o caminho que prefere seguir”. O próprio confronto com Balbino, cuja temperatura sobe episódio a episódio como se estivesse em uma panela de pressão, é um mecanismo dele de acesso àquele universo, ao passado da sua família, à geografia do local, observa Barbosa.
Sobre a relação entre Cristiano e sua mãe, Hermila e Barbosa têm opiniões parecidas. “Além dela ter um histórico ruim com Desterro, existe a questão do conflito geracional”, comenta Hermila. Barbosa aproveita para novamente elogiar seu “mestre”. O Hilton sempre defendia essa relação afetuosa, mas com um respingo de sexualidade”. O registro, como habitual em Hilton Lacerda, é permeado de uma sexualidade, ora latente, ora explosiva em cores e erotização.
A referência literária casa bem com o viés lírico, eventualmente iconoclasta de Lacerda. Os diálogos, por vezes, remontam mais a um sarau do que a um episódio de série como concebemos. “É uma arte diferente”, empolga-se Hermila. “Pegada de cinema, mas com ritmo de televisão”. É o cinema de Pernambuco, com “Fim do Mundo”, preenchendo espaços e ressignificando-os.