Almodóvar retorna à grande forma ao unirluto e culpa no melodrama “Julieta”
Contraposição entre o masculino e o feminino, marca do universo do cineasta espanhol, é um dos trunfos do filme que estreia nesta quinta-feira (7) nos cinemas brasileiros
O vermelho surge vívido e insinuante na tela pouco antes dos créditos em um amarelo berrante anunciarem que se trata de um filme de Pedro Almodóvar. “Julieta”, que marca o retorno do espanhol ao melodrama, devolve o rumo ao cineasta depois da bomba que foi “Amantes Passageiros” (2013). Aqui a direção de Almodóvar reencontra alguns de seus cânones como a contraposição entre o masculino e o feminino, a relação intrincada e cheia de arestas entre mães e filhas, uma Madrid fomentadora de identidade e um colorido que pulsa a todo tempo sua matiz almodovariana.
Cena do filme “Julieta”
Foto: Divulgação
Adaptado de três contos do livro “A Fugitiva”, da escritora canadense e vencedora do Prêmio Nobel de Literatura Alice Munro, “Julieta” permite a Almodóvar um diálogo com obras recentes de sua filmografia como “Volver” (2006) e “Abraços Partidos” (2009).
Quando flagramos Julieta (Emma Suárez), ela está se preparando para deixar Madri com o namorado Lorenzo (Dario Grandinetti) e alimenta o desejo de não mais retornar. Tudo muda de figura quando ela encontra por acaso uma jovem que fora amiga de sua filha. Ali, na face convulsionada de Julieta, descobrimos que há algo muito desestabilizador soterrado sob aquela fachada tão bem adornada. Ela decide não mais ir a Lisboa, deixa Lorenzo sem uma justificativa sequer e volta para o prédio em que morava no passado. Tudo com o objetivo de se reconectar com sua filha, que a esta altura intuímos não lhe dá notícias há muito tempo.
Ela começa a escrever uma carta para narrar a sua filha Antía como conheceu o pai dela, Xoan (Daniel Grao) e aos poucos o espectador se dá conta de que ali está sendo desvelado um punhado de traumas que ajudam a entender o contexto da personagem no momento em que a conhecemos.
Mas o que Almodóvar faz é muito mais que isso. Agora com a excelente Adriana Ugarte como a versão mais jovem de Julieta, ele observa como as pequenas mágoas, as verdades que permanecem ocultas e todo o peso do que não é dito vão minando a estrutura de uma relação. Seja ela de ordem amorosa, afetiva ou familiar. A questão da culpa, sempre mitigada silenciosamente, é um especial achado no filme. Mãe e filha são consumidas por ela, em graus e conotações diversos, e por ela se deixam paralisar.
Na riqueza de detalhamento do cinema de Almodóvar, que costumeiramente oferta lindas cenas, há muito a se colher por um observador mais atento. A evolução de Julieta é uma das belezas do filme. Seus penteados, suas roupas, as camadas de seu luto – e há mais de um pelo qual ela atravessa no filme – , são construções visuais interessantíssimas de um artesão rigorosamente criativo. Há, ainda, o elemento hitchcockiano com que Almodóvar vai desvelando o seu melodrama. A cena do trem é um exemplo pronto dessa direção capciosa que sugere um caminho para o espectador, só para lhe apontar outro.
Outro ponto que merece menção é a opressão do masculino sobre Julieta. Das escolhas de seu pai e como elas refletem em suas escolhas. É um lance sutil no cinema de Almodóvar, mas que ganha corpo em “Julieta” no desenlace do drama que vive a protagonista e na cumplicidade que ela desenvolve com a artista Ava (Inma Cuesta), alguém que ela conhece por meio de Xoan. O cinema poucas vezes é tão feminista como nos filmes do espanhol.
“Julieta” não adentra à galeria dos melhores filmes de Almodóvar, mas resgata a vivacidade de seu cinema, comprometida pelo filme anterior, e ratifica o melodrama como a mais perfeita colcha para o espanhol retalhar.
Cena do filme “Julieta”%2C que marca o retorno de Almodóvar ao melodrama e estreia no Brasil nesta quinta-feira (7)
Foto: Divulgação